sexta-feira, 22 de julho de 2011

Se você ver, para de beber - Leveduras

Desde sempre, nas mais diversas culturas e civilizações, seja atuando na produção de alimentos como o pão, de bebidas como a cerveja, o vinho, a chicha e o sake, ou ainda in natura, em um medicamento probiótico, o fermento – ou levedura – fez-se presente. 

Se o malte fornece açúcares e cor à cerveja, se a água a compõe e o lúpulo a tempera, quem a faz é o fermento. É ele o diamante da cerveja; sua alma confere distinção e contribui decisivamente para o aroma e sabor da bebida, além de interferir em seu corpo. 

As leveduras, abundantes e presentes em todos os lugares, são micro-organismos unicelulares do Reino Fungi responsáveis principalmente pela transformação do mosto cervejeiro em álcoois, gás carbônico, ésteres1, entre outros. Sua história para nós, cervejeiros, nasceu há pelo menos oito mil anos: as leveduras teriam fermentado certa quantidade de cereais esquecidos em um cesto ao relento, dando assim origem à cerveja, tradicionalmente uma bebida fermentada a partir de cereais. 

O Fantasma Cervejeiro 

Invisíveis aos olhos humanos, apenas em 1841, com o avanço da ciência, as leveduras receberam os créditos pelo seu trabalho. Sua existência e atuação até este marco eram uma incógnita2 e um grande mistério. Acreditava-se piamente que fantasmas eram os responsáveis pela mágica do processo fermentativo em geral. 

Naquela época, os tanques de fermentação - hoje na maioria fechados por motivos de economia e controle - deveriam ser abertos para que os “fantasmas da cervejaria” pudessem realizar seu trabalho, fermentando o mosto e transformando-o em cerveja. Como cada ambiente é diferente devido a fatores climáticos, luminosidade, etc., cada cervejaria mantinha sua própria colônia de fungos que produziam características específicas em suas cervejas. Estilos de cerveja nasciam de acordo com as leveduras presentes em maior número em determinada região, conferindo particularidades de aromas e sabores. 

Somente a partir dos progressos da ciência é que se pôde conhecer melhor a atuação das leveduras, possibilitando sua diferenciação conforme aspectos morfológicos e subprodutos por elas gerados. Isoladas e selecionadas em laboratório para produzir estilos específicos de cervejas com características próprias, células de cepas (linhagem, raça) de fermentos puderam ser reproduzidas, permitindo assim que estilos de determinadas localidades, cheios de peculiaridades, pudessem ser reproduzidos em qualquer lugar. 

Saccharomyces cerevisiae 

Hoje sabemos que milhares são as variedades de leveduras existentes, mas neste artigo abordaremos as Saccharomyces cerevisiae. E não pensem que são poucas - afinal, apenas dentro deste grupo há milhares de micro-organismos diferentes, que produzem distintos níveis de aromas e sabores se submetidos às mesmas circunstâncias, cada qual mais apropriado para um estilo específico de cerveja. 

No meio cervejeiro é comum a difusão da ideia da existência de dois tipos de fermento cervejeiro. O primeiro deles, o Saccharomyces cerevisiae, responderia pelas Ales - cervejas de alta3 fermentação cujas leveduras trabalham sob temperaturas maiores, normalmente entre 16º e 25ºC, podendo ter atividade de crescimento até por volta dos 37ºC e produzindo cervejas mais frutadas (comparativamente com as Lagers) no aroma e sabor. O outro fermento é o Saccharomyces uvarum, ou carlsbergensis, usado para as Lagers – cervejas de baixa4 fermentação, cujas leveduras atuam sob temperaturas mais amenas, entre 8º e 15ºC, podendo crescer até 34ºC e produzindo cervejas menos frutadas e encorpadas. A diferença entre ambos é que os fermentos Lagers são capazes de metabolizar um tipo de açúcar conhecido por melibiose (glicose-galactose), enquanto o das Ales não. Entretanto, essa diferenciação - mais histórica e prática - vem perdendo espaço na literatura científica, que se refere agora ao fermento S. cerevisiae tipo Ale e S. cerevisiae tipo Lager. 

Menos presente no mundo atual, cercado de controle e especificidade, as leveduras selvagens, um terceiro tipo de fermento cervejeiro, participam do trabalho de fermentação de uma outra família de cerveja além das Lagers e Ales - as Lambics. Dentro do processo cervejeiro, seriam elas entendidas como toda e qualquer levedura participante do processo fermentativo diferente da utilizada, querida, no preparo da cerveja. Podem ser do gênero Saccharomyces, na maioria dos casos, como também Brettanomyces, Candida, etc. No caso específico das Lambics, a cerveja seria fermentada espontaneamente por bactérias e leveduras presentes no ambiente a partir de seleção natural deste. Voltando às S. cerevisiae. Embora façam basicamente o mesmo trabalho de transformação dos carboidratos trazidos pelos maltes em álcool e gás carbônico, elas podem produzir, por diferenças de metabolismo, aroma e sabor do produto bem variados. Assim, vemo-nos diante de uma infinidade de opções de cepas, cada qual mais propícia para a produção de determinadas características de aroma e sabor. Então, para uma melhor escolha do fermento, devemos levar em conta as especificidades de cada cerveja. 

Se quisermos produzir uma cerveja de trigo, por exemplo, temos que buscar uma levedura capaz de transformar os precursores fornecidos pelos maltes em aromas de cravo (fenólico) e banana (acetato de isoamila), que são aromas típicos do estilo – mas não conseguidos na intensidade desejada pela grande maioria das leveduras. 

Pela grande superioridade de consumo das Lagers, impulsioada pelo estilo Pilsen, que ‘aparentemente’ não traz muito do fermento, por vezes somos iludidos quanto à importância da levedura cervejeira. Notem que disse aparentemente, pois mesmo nas Pilsners um fermento adequado se faz necessário, sendo desejados aqueles que não produzam tantos ésteres e diacetil, por exemplo, a fim de propiciarem uma melhor percepção dos atributos trazidos pelos maltes e lúpulos. Creio que, especialmente no Brasil, esta ilusão quanto à importância do fermento seja ainda maior, talvez pela nossa incipiente cultura cervejeira, sem tanta diversidade de estilos e muito atrelada à escola alemã, mais afeita às Lagers, e que produz cervejas mais limpas e neutras quanto a aromas e sabores de subprodutos de fermentação. 

Mas, se mesmo quando não aparecem são de suma importância para o estilo e qualidade da cerveja, o que dizer quando surgem como estrelas da companhia, como no caso dos estilos belgas de cerveja? 

A escola belga talvez seja o melhor exemplo da devoção às leveduras. Na maioria das vezes de composição simples de maltes e lúpulos, o diferencial nas cervejas belgas costuma ser o fermento, que traz aromas complexos de fermentação, ricos em frutas, compostos fenólicos e de especiarias. 

As leveduras são tão cultuadas pelas cervejarias locais que estas as mantêm em segredo e, muitas vezes, usam um segundo fermento para refermentações na garrafa com fim de disfarçar o principal, que não raro é responsável pelo reconhecimento da cerveja. É corriqueiro ouvirmos que tal é a levedura da Duvel, ou da Chimay, ou da Westmalle, por exemplo, pelas características sensoriais que dão à cerveja. 

A diversidade de cultura das leveduras das Ales belgas é fascinante, incrível, extensa e sem fim, principalmente se levada em conta a possibilidade de confecção de blends de fermentos, prática cada vez mais usual para trazer ainda mais complexidade à bebida. Laboratórios norte americanos, como Wyeast e Whitelabs, investem pesado no desenvolvimento de culturas de cepas semelhantes aos das tradicionais cervejarias belgas, visando principalmente ao mercado de cervejeiros caseiros e microcervejarias. 

No meio termo entre as escolas belga e alemã, surge a escola inglesa de cerveja, que não traz fermentos com características de aroma tão neutras quanto a alemã, nem tão intensas quanto a belga. Ela usa normalmente leveduras que não se sobrepõem aos aromas dos maltes e lúpulos, mas que coexistem bem com estes, marcando nítida presença ao fundo, todavia. 

Enfim, de nada adianta termos à disposição os melhores maltes que nos forneçam cores e carboidratos, a melhor água ou os melhores temperos, os lúpulos e especiarias se não tivermos uma boa cepa de fermento para realizar o trabalho de juntar todos os ingredientes e transformá-los na cerveja que queremos. 

Tema proibido 

Se para quem é de fora do meio cervejeiro a participação do fermento é meio secundária, dentro deste me parece superestimada, na medida em que falar sobre fermento tornase quase um tabu cercado de mistérios e segredos entre as cervejarias em geral, que atribuem a personalidade de suas cervejas à levedura que usam. Elas esquecem, entretanto, que o trabalho do fermento sofre influência e depende de uma série de outros fatores como composição e grau de aeração do mosto, quantidade e viabilidade da cepa, temperatura de atuação, pressão, tempo, pH, sanitização dos equipamentos, entre outros - o que a meu ver, por si só, não justificaria tanto segredo. Melhor que valorizar a cepa seria, talvez, valorizar o profissional que cuida e manipula a mesma, não? 

A grande verdade, que não podemos deixar de salientar, é que, quando submetemos uma cepa de levedura às nossas condições, criamos, sim, a nossa levedura, que mutante e complacente dará vida às nossas cervejas. 

Um brinde, então, às leveduras cervejeiras, que arduamente trabalham em prol da nossa alegria produzindo os aromas e sabores que tanto nos encantam. 


                                                                                                                                                                                             
                                                                                                                                                                                               fonte: site beerlife

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